O Cuidado que Chamam de Egoísmo: Reflexões sobre Valor e Disciplina

O Cuidado que Chamam de Egoísmo: Reflexões sobre Valor e Disciplina

Desde a infância, aprendi que as coisas possuem um valor que vai além do simples ato de possuí-las; elas representam esforço, dedicação e sacrifício. Cresci em um ambiente onde a escassez era uma realidade constante, e cada objeto, cada brinquedo, cada livro ou CD que chegava às minhas mãos era fruto de um esforço conjunto da família, especialmente dos meus pais. Eles não apenas compravam, mas investiam uma parte de si mesmos, doando horas de trabalho, renunciando a desejos próprios para proporcionar algo a mais para mim. Esse gesto não era simples consumo; era cuidado e amor transformados em presentes, o que, de certa forma, fazia desses objetos uma extensão daquilo que eles sentiam e de quem eu era.

Foi nesse contexto que desenvolvi uma forte disciplina e zelo pelas minhas coisas pessoais. Aprendi a cuidar de cada objeto como um bem precioso, não pelo valor material, mas pela representação emocional e simbólica que ele trazia. Desde pequeno, sentia uma responsabilidade de preservar o que era meu. Cada riscado evitado, cada arranhão ausente era uma demonstração de que eu valorizava aquilo que tinha recebido. Eu não gostava de emprestar — não por desconfiança ou mesquinharia, mas porque percebia que nem todos tinham o mesmo cuidado. Esse zelo era, para mim, um tipo de responsabilidade silenciosa, uma forma de gratidão pelo que meus pais me proporcionaram.

Lembro de uma experiência marcante, uma que me fez questionar se o que os outros chamavam de “egoísmo” era realmente o que sentia. Um amigo pediu emprestado um CD do Oficina G3, um álbum acústico pelo qual eu nutria um carinho especial. Era mais do que uma coleção de músicas para mim; era um presente que havia chegado com sacrifício, um reflexo da música que preenchia minha casa e minha vida. Mesmo relutante, emprestei, orientando-o a ter cuidado. Esse CD, que estava comigo há mais de um ano sem qualquer arranhão, retornou marcado, riscado, como se um pedaço do respeito e do cuidado que eu dedicara a ele tivesse sido ignorado. E o mesmo se repetiu em outros momentos: livros emprestados que voltavam riscados, páginas dobradas, até mesmo exemplares que nunca retornavam.

Quando alguém cuida intensamente de suas coisas, quando recusa o empréstimo por querer preservar esse zelo, é comum que seja julgado como egoísta. Mas será que é egoísmo? Será que o cuidado e o respeito pelo que se possui são realmente expressões de individualismo? Talvez essa proteção seja uma forma de reconhecer o valor intrínseco do que temos, de entender que cada objeto carrega uma história que nos define e nos lembra de quem somos.

Esse tipo de “egoísmo”, se é que pode ser chamado assim, parece mais uma consciência de valor, uma gratidão prática pelo que foi conquistado. Cada livro, cada CD ou brinquedo que cuidamos com zelo representa o nosso respeito pelo esforço que alguém fez para que o tivéssemos, e por isso, eles merecem ser preservados. O cuidado não é apenas pelo objeto, mas pelo significado que ele carrega.

Em um mundo onde o consumo é fácil e o descartável se tornou a norma, há um valor especial em preservar o que temos. Proteger algo não significa recusar o outro, mas entender que a integridade dos objetos também fala sobre a nossa integridade. Na verdade, cuidar das nossas coisas pode ser visto como um compromisso ético com o que possuímos e com as memórias que carregamos. Esse “egoísmo” pode ser, na realidade, uma expressão de respeito e um exemplo de como devemos valorizar aquilo que conquistamos, ensinando aos outros, inclusive, o valor de cuidar e de preservar.

Comments

No comments yet. Why don’t you start the discussion?

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *