-
Na entrada de Spagnol
No meu mundo, ao adentrar aquela rua de paralelepípedos, com tons amarelos e alaranjados — tingidos pelo barro que escorria da encosta de pedra à direita —, naquela rua, na quebrada à direita, entre a saída da Vila Batista e a entrada de Pedra dos Búzios, foi ali, exatamente ali, que me empolguei. Parecia que eu havia cruzado um limiar, inaugurando um ciclo de novas possibilidades. Fui para lá a pé, com meus pais, para morar numa casa. Avançamos para além. Fomos mais fundo, onde a rua se estreitava num beco. Foi lá — lá no fundo — que ouvi pela primeira vez o nome Spagnal. Um som que não…
-
Eu Buscava
Eu busco.E quando criança, já buscava. Sentado no quintal da minha casa, no bairro Grande Vitória, com o chão de areia que meu pai e minha mãe carregaram em baldes, transformando o presente de meu bisavô, um terreno outrora manguezal, em solo firme. De carrinho em carrinho, o barro se tornou quintal, e o quintal, o meu mundo. Ali eu brincava. E ali mesmo eu buscava. Buscava algo que não sabia nomear, mas que já me habitava. A palavra executivo, não sei de onde veio, mas sei que estava em mim. Não era comum ouvi-la. Falo dos anos de 1991, talvez 1992. Mas ela saiu da minha boca como quem…
-
O Palco na Rua
O Palco na Rua Era um dia de junho, provavelmente um sábado, por volta das seis e meia da tarde. A rua era a da casa da minha avó, mas naquela tarde eu a reconhecia como sendo a rua da casa da minha tia Preta. Estávamos na década de 90. No meio da rua, bem em frente à casa, um palco havia sido montado. Era um palco simples, improvisado. Dois homens faziam a passagem de som. Eu fiquei empolgado. Nunca tinha visto um palco de perto. E ali estava ele, como se tivesse vindo até mim. Não havia luzes fortes nem grandes equipamentos. Mas havia encantamento. Dois homens, cujos nomes…
-
A Caverna da Rejeição e o Veneno dos Homens
A rejeição é uma ferida que não sangra. É uma pedra invisível lançada contra o peito, mas que reverbera na alma como um eco sem fim. Rejeitar é um ato. Ser rejeitado é um abalo. Dois gestos, duas dores, duas margens do mesmo abismo.O primeiro, aquele que rejeita, talvez nem saiba o peso que deposita no outro.O segundo, aquele que é rejeitado, sente-se como algo descartado, lançado à deriva, deixado à margem, exilado sem sentença, sem palavra, sem rosto. O sentimento de rejeição não nasce no vazio: ele floresce precisamente onde havia a intenção de permanecer, de fazer parte, de entrelaçar passos na mesma estrada. Só se sente rejeitado aquele…
-
Vivificância: O Ser do Não Ser e a Presença do Vazio
Há sentimentos que se expressam por meio de uma exatidão inexata; paradoxalmente precisos em sua imprecisão, como um lastro pesado que se expande e toma volume, desfocando limites e identidades. Um sentimento que insiste em não ser rotulado, embora exista concretamente em sua própria abstração. Refiro-me ao “vazio”, não aquele “nada” simples e inexistente, mas a algo maior, mais profundo e inevitavelmente presente. O vazio não pode ser definido simplesmente como ausência, pois ele é. Ele possui forma na ausência de forma, é o ser do não ser, uma presença que persiste justamente em sua negação. É nesse paradoxo que ele ganha potência e vida própria, fazendo-se notar ao resistir…
-
A Supremacia do Um: A Matemática Filosófica da Vida
Há na aritmética dos valores humanos uma equação que desafia os números e transborda a lógica habitual. Um único ser, preenchido por virtudes profundas, supera multidões desprovidas de significado. Este “um”, portador de algo essencial e vibrante, torna-se a resposta à monotonia das quantidades vazias. O que é um senão a síntese da totalidade quando habitado pela potência de um ideal? O que é o mundo senão o reflexo de um espírito que se recusa a ceder ao desencanto? Um com esperança é maior que três desesperançados, pois a esperança é o sopro vital que move a existência em direção ao inominável. Três que desistiram nada mais fazem que sedimentar…
-
O Renascimento das Palavras: Um Blog que Respira Após o Silêncio
Por entre as camadas silenciosas de um tempo que passou, carrego a memória de uma voz sufocada. Foi sob o peso de circunstâncias externas que me paralisaram que minha liberdade de escrever encontrou sua primeira barreira. Não eram muralhas intransponíveis, mas ventos contrários, soprando incertezas e receios que se infiltraram no cotidiano, minando a convicção de que minhas palavras tinham lugar no mundo. Pouco a pouco, a chama que sustentava minhas ideias começou a vacilar, apagando-se sob o sopro frio do desânimo. Foi assim que abandonei o meu Ideias para a Vida, um espaço que fora, até então, um refúgio, um campo onde pensamentos brotavam livres, cultivados com o zelo…
-
O Amor Perdido na Linha do Tempo
A ilusão poética do 3 mais 9 é a esperança de quem acredita poder refazer movimentos que, no tempo, já se tornaram definitivos. Mas o tempo não retrocede.Ele desliza sobre trilhos invisíveis, em velocidade constante, sem freios, sem paradas, sem possibilidade de reembarcar na estação que ficou para trás. Tudo acontece em movimento.Entradas e saídas se dão em plena corrida. E quando algo é perdido, não há recuo possível, apenas a memória permanece, como uma fotografia embaçada. Assim, alguns gestos, palavras e olhares selam nossa impossibilidade de reconstrução.O pedido feito.A aceitação silenciosa.A entrada na sala, o olhar cruzado à direita — onde, sentada, estava ela: a promessa de algo transcendente.…
-
O Quarto que Me Leva
O Quarto que Me Leva Entro em um quarto cercado de livros. Lá, mais à frente, repousa uma cadeira com rodinhas — outrora pertencente a um escritório comercial, hoje memória enferrujada. Seus braços denunciam o tempo com ferrugem, e o encosto rasgado revela o que não mais sustenta. Diante dela, duas telas: um monitor de 24 polegadas e uma televisão de 32. Acima, dois olhos eletrônicos — webcams de olhos azuis e vermelhos — que me encaram com a vigilância muda da modernidade. As paredes não são apenas paredes — são bibliotecas. À frente, ao fundo, à direita, à esquerda: livros empilhados como muralhas de pensamento. Acima, instrumentos em seus…
-
A Travessia da Caverna
Havia um homem.Não era diferente dos outros, senão pela marca invisível que carregava no peito: uma ferida sem nome, sem sangue, sem cura aparente. Um dia, ao se estender para tocar a mão de outro, esta lhe foi recusada.Não houve palavras, não houve explicações, apenas o frio súbito do não acolhimento, o eco de portas que se fecham sem ranger. Foi então que, sem perceber, ele encontrou a entrada da caverna.Não havia mapa, nem trilha, nem placa avisando: “Aqui habita o rejeitado”.Havia apenas um portal aberto diante de seus olhos, e uma dor tão funda que não encontrou coragem para dizer não. Ele entrou. Dentro da caverna, o tempo perdeu…