A Descida sem Freio: Entre o Medo e o Livramento

A Descida sem Freio: Entre o Medo e o Livramento

As imagens vêm como flashes na memória, cenas soltas de um tempo distante, mas que a alma jamais esquece. Era um dia de domingo, daqueles dias que pareciam maiores na infância, e minha avó Arlinda havia me levado à Igreja Católica no bairro Estrelinha. A igreja ficava no alto, quase ao final de uma rua calçada com bloquetes de concreto. Subindo o morro, ela surgia como um marco entre o céu e a terra, silenciosa e serena. Não sei o motivo de termos ido naquele dia, mas o que realmente marcou a minha lembrança aconteceu durante a semana, quando aquele morro se tornou o cenário de um livramento que nunca saiu da minha mente.

Naquele dia, eu estava novamente na rua, com minha bicicleta Monark verde e preta — o prêmio mais valioso que havia recebido, uma conquista que me fazia sentir rico. A bicicleta brilhava sob o sol, e ao subir o morro com ela, sentia o orgulho de quem possui um tesouro. Minha imaginação projetava um passeio simples, uma descida leve para sentir o vento bater no rosto, sem saber que aquela ladeira, tão inofensiva em aparência, logo se transformaria em uma ameaça silenciosa.

Comecei a descer o morro pedalando, sem pressa, mas embalado pelo declive. Logo a gravidade tomou conta, e a bicicleta ganhou uma velocidade que não conseguia controlar. Senti o primeiro pavor ao apertar o freio e perceber que ele não respondia. O freio traseiro, inútil, não oferecia resistência. O freio dianteiro, quase uma piada, também falhava. Desci aquele morro com o coração preso na garganta, a rua parecia se alongar diante dos meus olhos, e o tempo, antes tão ágil, se estendeu em uma eternidade de medo.

Lá estava eu, embalado por uma força que não podia deter. O desespero me consumia. Pensei em me jogar da bicicleta ali mesmo, mas o chão era duro, e a ideia de rasgar os joelhos contra os bloquetes me paralisava. Pensei em virar bruscamente contra um muro, mas sabia que o impacto poderia ser pior. Minha mente infantil trabalhava com a rapidez de um adulto em apuros. Cada segundo era uma escolha — e o medo sussurrava que não havia saída.

Foi então que tive a ideia. Primeiro, tentei colocar o pé no chão, como se a sola do chinelo pudesse frear a bicicleta. Senti o solado arrancar do meu pé, vi o chinelo se perder na descida, mas a velocidade não diminuiu. Era inútil. O desespero aumentava conforme o final da rua se aproximava.

Num ato de improviso e sobrevivência, fiz algo que até hoje me parece um milagre da infância: tirei o outro chinelo do pé e o imprensei contra o pneu da bicicleta. Ao mesmo tempo, apertei os freios de forma insistente, mesmo sabendo que eram falhos. O chinelo, que não fora feito para tal missão, virou um herói improvisado. A borracha chiou, a velocidade diminuiu, e aos poucos, quase como um sussurro, o controle começou a retornar.

Cheguei ao final da ladeira sem parar completamente. A bicicleta continuou andando, agora lenta e trêmula, como se também estivesse cansada da luta. Um carro vinha em minha direção, e, por um fio, consegui desviar. Foi então que finalmente parei, em um ponto onde o terreno me deu trégua e a bicicleta desistiu de me desafiar.

Eu olhei para cima, para o morro imenso que tinha descido, e o peso do momento caiu sobre mim. Meu coração batia acelerado, mas um alívio tomou conta do meu peito. Naquele instante, entendi que havia recebido um livramento. Algo maior do que eu havia me protegido. Se não fosse a ideia do chinelo ou uma intervenção que não compreendia, talvez a história tivesse um desfecho diferente.

O sol, que antes parecia brilhar sem pressa, agora me iluminava com outra intensidade. Subi a bicicleta e voltei para casa com as mãos trêmulas e os pés descalços. Não contei tudo à minha mãe nem ao meu pai, apenas deixei o silêncio falar por mim. Mas algo dentro de mim sabia: naquela tarde, o céu havia me estendido a mão.

Aquela bicicleta Monark, que um dia fora símbolo de liberdade e alegria, também me ensinou sobre o medo, a coragem e o improviso. Aprendi que nem todas as descidas da vida vêm com freios prontos e que, às vezes, é preciso usar o que temos em mãos para sobreviver. O morro me ensinou a respeitar a velocidade, mas também a confiar no inesperado, pois quando tudo falha, sempre há uma saída — mesmo que ela venha na forma de um chinelo contra o pneu.

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