Era o ano de 2001, e meu pai era responsável por um ponto de pregação em Paul, Vila Velha. Um lugar simples, escondido nos labirintos da periferia, onde a fé se erguia em meio a terrenos que exigiam mais do espírito do que do corpo. Para chegar àquela casa, passávamos por caminhos que o asfalto jamais tocara. Depois do viaduto principal, virávamos à direita, atravessávamos por baixo de um viaduto mais estreito e seguíamos adiante, em direção a um morro. O carro ficava para trás, pois dali em diante o trajeto pertencia apenas aos pés: uma trilha estreita, margeada pela mata, onde apenas uma pessoa podia passar por vez. Esse caminho era o corredor que nos levava àquele terraço onde se reuniam palavras, cânticos e lições de esperança.
Eu sempre levava meu violão Giannini série estudante, adquirido com sacrifício por minha mãe. Foi comprado no carnê, na antiga loja Strauch, no centro de Vitória — uma loja que já não existe mais, consumida pelas chamas de um incêndio, mas ainda viva em minha memória. Aquele violão era um símbolo de algo maior: o esforço silencioso de quem acredita no futuro e investe, mesmo em meio à escassez. Cada nota que dele saía carregava o peso e a leveza da história que o acompanhava.
Subíamos aquele morro semanalmente, à noite, para os cultos. Também realizávamos a Escola Dominical no mesmo lugar, naquele terraço humilde, mas cheio de significado. Foi ali que, pela primeira vez, ouvi e li algo sobre Santo Agostinho, em uma lição bíblica que provavelmente fora escrita pelo pastor Claudionor de Andrade. Na simplicidade daquele espaço, entre as lições bíblicas, o pensamento do santo encontrou seu lugar, como uma semente que se planta em terra fértil sem saber quando germinará. Eu estava no segundo ano do ensino médio, na Escola de Primeiro e Segundo Graus Professora Assissolina Assis Andrade, em Aribiri, e a rotina era uma dança entre os deveres acadêmicos e os compromissos espirituais.
Numa dessas noites, o caminho cotidiano revelou sua imprevisibilidade. Ao atravessarmos a parte urbana e adentrarmos a trilha estreita, a escuridão se fazia senhora do percurso. O chão parecia um vazio sem contornos, e meus passos, guiados mais pela memória do trajeto do que pela visão, avançavam hesitantes. Foi então que, num instante quase fora do tempo, senti uma pancada abrupta e inesperada: o chão desapareceu sob meus pés, e caí dentro de um buraco. Não o vi, mas ele estava lá, escavado para a construção de uma sapata que sustentaria um muro. A dor veio rápida, irradiando do tornozelo. Levantei-me como pude, mancando, e continuei o caminho. A missão era maior que a dor. Fomos ao culto, e mesmo mancando, voltei para casa, carregando não apenas o violão, mas agora também um tornozelo inchado e a necessidade de repouso.
Chegando em casa, minha mãe, sempre atenta e cuidadosa, me levou ao Hospital São Lucas. O diagnóstico era evidente: o tornozelo precisava ser engessado. O gesso subiu até o joelho, delimitando movimentos, mas não a inquietação do espírito. Com um atestado de 20 dias, fui forçado a parar. E foi nesse espaço inesperado, nesse buraco metafórico aberto pela queda, que encontrei um novo terreno para explorar: os livros. Passei aqueles dias na varanda de casa, com o calor escaldante como companhia, deitado no chão, levantando os livros como quem eleva mundos. Li Cinco Minutos, A Viuvinha, Dom Casmurro e O Cortiço. Cada página era um refúgio, uma ponte entre o presente estagnado e os universos que a literatura desenha.
Os buracos no caminho cotidiano têm uma estranha maneira de interromper a rotina e nos lembrar da fragilidade dos nossos passos. Às vezes, eles nos machucam, nos forçam a desacelerar, nos fazem perder o equilíbrio. Mas também nos oferecem algo que os trajetos previsíveis não dão: a oportunidade de enxergar o que ignorávamos, de ouvir o que o ritmo apressado não nos permitia escutar, de habitar lugares onde talvez não ousaríamos entrar. Aquele buraco, tão literal e tão simbólico, marcou não apenas o meu tornozelo, mas também a minha visão sobre os desvios da vida.
Há buracos que nos forçam a cair para que possamos nos levantar de forma diferente. Eles interrompem, mas também ensinam. E naquele buraco, perdido no caminho de um morro em Paul, encontrei mais do que a dor de um tornozelo inchado. Encontrei o tempo necessário para perceber que até as quedas podem ser instrumentos divinos, que até o imprevisto pode carregar consigo um convite à reflexão e à descoberta. Assim como a trilha estreita que só comportava uma pessoa por vez, os buracos no caminho nos lembram que há percursos que precisamos fazer sozinhos, com coragem, com fé e com os olhos abertos para o que eles têm a revelar.