O medo de habitar o próprio traço

O medo de habitar o próprio traço

Fui mestre de caminhos. Mas temi pisar a estrada que eu mesmo pavimentei.

Fui aquele que carregava o mapa e tremia ao erguer o pé. O que investiu em conhecimento com a ousadia de um visionário, mas colheu o silêncio de um futuro que nunca soube chegar. O que trocou o agora por uma promessa embalada num anel de latão vindo de um chiclete, querendo que ali morasse o ouro de uma rara eternidade.

Fui aquele que suspirou diante dos faróis que iluminaram sua existência, mas recuou, não pelo medo da escuridão, e sim do brilho. Fui aquele que viu o sentimento tomar banho, que brincou à porta de um quarto como quem contempla um paraíso interditado. Aquele que subiu escadas interiores, trancou portas simbólicas, retirou paredes emocionais, e encontrou, num chão limpo e secreto, o sinal intacto de uma beleza que jamais ousou possuir.

Fui aquele que entrou na casa ainda sem morador, e nela sonhou. Mergulhei nos cômodos da imaginação molhada de paixão, abri as janelas para os horizontes e desejei alcançar o centro do horizonte dela, que ficava além da parede do fundo, onde moram os segredos que não se dizem. Fui aquele que viu a tentação se agachar, mas ficou paralisado no limiar da forma informe.

Vi possibilidades infinitas, mas por medo, não consegui medi-las. Vi o tangível à frente, e não o toquei. Permaneci estagnado diante dos mililitros de uma presença líquida demais para ser contida, e sólida demais para ser bebida. Fui aquele que se trancou no quarto, justamente por não conseguir se trancar no quarto.

Fui o que não comeu, por não saber se poderia comer. Fui o que desabrochou para o não-pertencimento, como uma flor que nasce no asfalto e já sabe que não vai durar. Fui o que entrou, deitou, pegou, saiu e não penetrou. O que invadiu o banheiro e não tomou banho. O que cavalgou com medo da própria cavalaria.

Fui aquele que, do lado direito da vida, andou grudado às paredes, em lugares apertados mas jamais rompeu o espaço. Fui o que assistiu, com ela, as cenas que queria viver e não viveu. Tracei triângulos de desejo, empurrei círculos de promessas, deitei em meias-luas de afeto interrompido. Abri circunferências de silêncio, acariciei linhas de ternura, marquei com minha própria caneta uma reta que queria ser curva e uma curva que queria ser permanência.


E ainda assim, estou aqui. Com os traços do que não foi, mas com a mão firme de quem aprendeu que a vida não espera por quem teme sua própria escrita.

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