O céu estava azul. Algumas nuvens espalhavam-se pelo horizonte, pintando aquela tarde com um toque divino. Meu pai trabalhava fora, enquanto minha mãe, em sua labuta doméstica incansável, parecia nunca parar. Ela acordava antes de todos e só encontrava repouso muito depois que meu pai. Suas mãos moldavam o dia, enquanto meu universo infantil se desenrolava no quintal de nossa casa.
Era um quintal vasto, um território onde cada grão de areia parecia ter uma história. Minha brincadeira favorita era contá-los, sem pressa, sem compromisso, apenas acompanhando a cadência da minha imaginação. Era um mundo só meu, um espaço onde o possível e o impossível se misturavam.
Nessa vastidão, encontrei um canto especial: um amontoado de cascalhos, pedaços de lajotas e rebocos que um dia sustentaram uma casa. Agora, aquelas ruínas do passado haviam se tornado chão. Em meio a esse chão, repousava uma banheira velha, enferrujada e esquecida, que outrora oferecia conforto aos corpos cansados. Para mim, no entanto, ela era muito mais. Tornou-se um oceano. As larvas que ali habitavam transformaram-se em peixes. E em minha mente, navios navegavam pela imensidão daquela banheira.
Era assim que o mundo se apresentava: entre o real e o imaginado. Nos tocos de madeira que restaram como vestígios do telhado da casa, havia pregos esquecidos, suas pontas afiadas relembrando funções que um dia foram vitais. Pregos que já haviam sustentado ripas agora pareciam inúteis. Mas na inutilidade, minha imaginação encontrou um novo propósito.
Peguei a estrada do meu quintal, aquele pequeno universo que se estendia sob o armazém e além. Deixei o chão como um avião que alça voo e, ao pousar, transformei-me em navio no mar imaginário. Mas foi nesse instante que a realidade, com sua firmeza, interrompeu minha jornada. Um prego, cravado em um dos tocos, rasgou meu mundo infantil. Ele transpassou minha pele, introduzindo uma dor tão real que sobrepujou a força da imaginação. O sangue escorreu, e a brincadeira acabou.
Entre o grito que soltava e o choro que se acumulava, senti a dor fazer morada. Corri. Corri como se pudesse deixar a dor para trás, como se a velocidade pudesse apagar o que havia acontecido. Mas a realidade não era tão generosa. O prego havia marcado minha carne, e o sangue que escorria era um testemunho de sua passagem. Minha mãe, com seu olhar atento, percebeu o que acontecia. Seus olhos me seguiam enquanto eu rodava o quintal, agora apenas com um pé firme no chão, como um saci improvisado pela necessidade.
Ela veio ao meu encontro, sua expressão não trazia repreensão, mas amor e preocupação. Sem hesitar, pegou-me em seus braços e levou-me ao hospital. Lá, médicos cuidaram do ferimento, fechando-o com linha de anzol. Pensei por um momento: “Será que essa linha serviria para pescar no meu mar imaginário?” Minha perna ficou remendada, personalizada com uma nova cicatriz, e a dor deu lugar a uma calma que só o cuidado materno podia oferecer.
Naquele dia, aprendi que pregos rasgam. A realidade tem o poder de ferir, de nos fazer sangrar, de deixar marcas que nunca desaparecem completamente. Ela nos lembra que nem todas as aventuras terminam como imaginamos. Mas aprendi também que o amor, como o de minha mãe, pode curar. A realidade pode ser cruel, mas o amor é maior, e entre os dois, há espaço para prosseguir.
Minha imaginação, mesmo ferida, sobreviveu. Ela continuou a colorir meu mundo, enquanto a cicatriz na perna permaneceu como uma lembrança do dia em que o céu do quintal e o chão de cascalhos se uniram para me ensinar que, entre a fantasia e a vida real, existem pregos, dor e aprendizado. E que o amor, esse sim, é a linha que costura tudo.