Renato era o nome dele, meu colega de sala na primeira série do primeiro grau. Lembro-me de sua presença infantil, simples, tão parecida com a minha. A infância é um espaço de descobertas, mas também de ilusões, onde acreditamos que a vida é um fio inquebrável, imune às tragédias. Mas, em 1991, essa ilusão se desfez de forma abrupta e dolorosa. Foi em um dia qualquer, em casa, quando ouvi alguém falar — provavelmente minha mãe: “Renato morreu.” A frase, direta e sem alívio, me atingiu com um peso que eu, criança, não sabia carregar.
Ele havia sido atropelado. Estava na rua principal do bairro Grande Vitória, pegando “ponga” no carro de lixo, quando caiu e foi atropelado por outro veículo. Era um ato tão comum para algumas crianças, um gesto de brincadeira que desafiava os limites, mas que, naquele dia, trouxe consequências irreversíveis. Foi a primeira vez que ouvi sobre a morte de alguém próximo, alguém com quem dividia o espaço da sala de aula, os mesmos cadernos e a mesma professora.
No dia seguinte, fui ao velório de Renato. Era na Igreja Católica do Bairro Grande Vitória, um lugar que sempre parecia tão grande e distante, mas que naquele dia parecia pequeno demais para conter o luto que ali se reunia. O caixão era branco, uma cor que, até então, eu associava à pureza, mas que naquele momento parecia carregar um tom de tristeza impossível de descrever. A sala estava cheia. Nossa professora, de camisa branca e óculos escuros, estava lá, tentando organizar as crianças enquanto chorava. Ela parecia se dividir entre a responsabilidade de conduzir aquele momento e o peso da dor que carregava. Aquela imagem permanece vívida em minha memória: uma mulher que era nossa guia na sala de aula, agora tomada pela vulnerabilidade de uma perda que transcendeu qualquer papel ou função. Eu também chorei, incapaz de conter o impacto daquela cena.
A Escola Professora Maria Estela de Novaes, no bairro Grande Vitória, era onde dividíamos os dias com Renato. Era um lugar que, até então, parecia um refúgio de aprendizado e amizades. Mas naquele dia, a escola perdeu um de seus filhos, e nós, tão jovens, nos deparamos com a dureza do que significava dizer adeus. Nossa professora, como quem sabia da importância daquele momento para a turma, levou todos nós à igreja. A proximidade do local permitiu que fossemos a pé, em um cortejo silencioso e confuso, cada passo nos levando mais perto de algo que não conseguíamos compreender completamente.
Chorei no velório. Não apenas pela ausência de Renato, mas pela confusão que a morte trouxe à minha percepção de mundo. Eu não sabia que crianças podiam morrer. Para mim, a morte era algo reservado aos muito velhos, algo que acontecia longe, em um tempo distante. Mas ali estava Renato, imóvel no caixão, rodeado por colegas que, como eu, tentavam processar algo maior do que nós mesmos.
Na minha mente infantil, uma pergunta persistia: Por que ele estava na rua? Eu não ficava na rua; para mim, a rotina era clara: casa, escola, casa novamente. Não entendia que realidades podiam ser diferentes, que para algumas crianças a rua era mais do que uma passagem — era um espaço de vida, de brincadeiras e, às vezes, de perigos. Renato me ensinou algo que eu não queria aprender: a fragilidade da vida, a imprevisibilidade dos dias, o peso da perda.
Senti profundamente sua ausência. Ele não era apenas um colega de sala; era a representação de uma amizade que não teve tempo de se desenvolver plenamente. Renato era o primeiro rosto familiar que a morte levou, e sua partida deixou em mim uma marca que o tempo jamais apagou. Naquele dia, descobri que a morte não fazia distinções, não escolhia pela idade ou pela inocência. Ela simplesmente vinha, silenciosa e definitiva.
A lembrança daquele velório na pequena igreja, do caixão branco, das lágrimas que não consegui segurar, permanece viva em mim. Renato se foi cedo demais, e sua partida me deu a primeira lição sobre a impermanência da vida, uma lição que, embora dolorosa, ajudou a moldar a sensibilidade com que enxergo o mundo. Hoje, ao revisitar essa memória, não penso apenas na dor, mas na lembrança de uma criança que, por um breve período, compartilhou comigo os primeiros passos da jornada da vida. E, em sua ausência, deixou uma presença eterna em minha memória.