Irmãos. Essa palavra ressoa em meus ouvidos com um peso que só o tempo pode moldar. Quando criança, ela era quase abstrata para mim, algo grande demais para abarcar. Mais pesado ainda era o singular: irmã. Um sonho infantil meu era ter um irmão, alguém da minha idade. Mas o que papai e mamãe me deram foi algo diferente. Uma irmã, sete anos mais velha. É curioso pensar quem foi oferecido a quem: ela a mim, ou eu a ela? A lógica aponta que eu fui dado a ela, um pequeno presente para completar o seu reino.
O que significa ter uma irmã sete anos mais velha? Para mim, naquela época, significava submissão. Tudo o que ela pedia soava como ordem. E ordens, na lógica dela, não eram para ser questionadas, mas obedecidas. Porém, essa lógica tinha uma peculiaridade: ela valia apenas para mim. Quando se tratava de meus pais, Marcela tinha outra dinâmica, preferindo resistir à obediência.
Marcela. Ela gostava de apreciar o quintal, um lugar que para mim era cheio de aventuras e para ela, um trono de contemplação. Seus cabelos brilhavam sob o sol enquanto ela sentava em um balanço, com uma laranja nas mãos, pronta para o ritual. Descascá-la era um ato quase solene, um de seus hobbies favoritos nas tardes silenciosas. Uma laranja para Marcela. Uma por dia nunca parecia suficiente.
Laranjas têm cascas. Cascas são proteção. E havia algo cruel no ato de descascar uma laranja, como tirar sua única armadura. Era necessário torná-la vulnerável para então sugar todo o seu sumo. Minha irmã fazia isso com uma maestria que me impressionava. E lá estava ela, sentada como uma rainha, quando me gritou:
– Tiago, vem aqui agora!
Obedeci prontamente. Não queria desapontá-la. Brigas custam caro, e eu sempre temia me endividar emocionalmente.
– O que foi, Marcela? – perguntei.
– Pega a faca pra mim descascar a laranja, agora!
Corri para atendê-la. Não era apenas uma tarefa; era uma missão. Entrei na casa, fui até a cozinha, e lá estava ela, brilhante na gaveta: a faca. Cabo azul, lâmina espelhada, a especialista em fragilizar laranjas. Peguei-a rapidamente e voltei para o quintal, movido pela urgência de cumprir minha tarefa. Mas o destino tinha outros planos.
Correndo pela varanda, a faca em minhas mãos, meus pés perderam o chão. Tropecei. No instante em que meus joelhos dobraram involuntariamente, vi a faca girar no ar, sua lâmina voltada para mim. O momento se eternizou. Minha queda parecia acontecer em câmera lenta. O chão me recebeu com brutalidade, e a faca me encontrou. Seu beijo frio alcançou meu queixo, mas não parou ali. A lâmina transpassou minha carne, atingindo o céu da minha boca. Nunca o céu esteve tão perto da terra.
O impacto foi rápido, mas suas consequências ficaram. O sangue começou a verter, misturando-se à poeira do quintal, um testemunho de sacrifício involuntário. Minha mãe saiu correndo de casa, em pânico, ao ouvir que uma faca havia ferido seu único filho. Marcela, a rainha em seu trono, desceu para socorrer seu criado. Duas mulheres aos pés da minha cruz improvisada, tentando conter o sangue que não parava de escorrer. Minha mãe trouxe uma fralda de pano, pressionou minha ferida, e juntas, elas me levaram ao hospital.
Levei pontos. O céu da minha boca, rasgado pela faca, foi costurado. O corpo pode ser remendado, disseram. Mas o coração, fragilizado pelo susto e pela dor, ainda carregava aquela lembrança. A faca que deveria servir à laranja acabou me marcando de outra forma, deixando uma cicatriz invisível, mas permanente.
Remendar o corpo é simples. Remendar a alma, não. Felizmente, facas não rasgam almas. Marcela, minha irmã, continua sendo uma das figuras mais importantes da minha vida. Aquele dia, de dor e caos, se tornou mais do que uma memória dolorosa. É um lembrete do sacrifício, do amor, e das lições que a vida nos dá nos momentos mais inusitados.