O Choro do Meu Pai: Quando a Dor Visita os Fortes

O Choro do Meu Pai: Quando a Dor Visita os Fortes

Era uma manhã comum, ou pelo menos parecia ser. Estava sentado no tapete da sala, olhando ao redor com o olhar curioso e atento de criança. À minha esquerda, a estante com o aparelho de som repousava imóvel, como um guardião silencioso. Daquele ângulo, podia ver a porta, uma parte do meu quarto, o quarto dos meus pais e o corredor que levava à copa. Tudo parecia em seu lugar, um retrato de normalidade que logo seria interrompido.

Foi então que ouvi um som inesperado. Um choro. Mas não era um choro qualquer, era potente, profundo, o tipo de choro que carrega o peso de algo irreparável. Virei a cabeça e vi meu pai sair do quarto. Ele segurava os sapatos nas mãos, vestido de roupa social, mas desfeito. Sentou-se no sofá, ali na minha frente, e começou a calçar os sapatos. Enquanto fazia isso, chorava. Chorava como uma criança. O som daquele choro rasgava o silêncio da casa, como algo que nunca deveria ser ouvido. Meu pai, aquele homem forte, inabalável, que para mim era quase indestrutível, naquele momento se desmoronava.

Eu não entendia. Na minha mente de criança, pais não choravam. Meu pai era “macho”, firme, duro como o chão que ele pisava. Mas naquele dia, o chão tremeu. Seu choro era mais do que lágrimas, era lamento. Uma voz embargada e, no meio do pranto, uma palavra, um nome que ecoava entre os soluços: “Vovozinha”. Meu coração ainda não sabia ao certo o que significava, mas o som desse nome me fez entender que algo muito sério havia acontecido. Minha bisavó havia partido.

Minha mãe, que veio da copa, se aproximou com cuidado. Passou as mãos pelas costas do meu pai, num gesto de consolo, tentando segurá-lo onde ele desmoronava. Era um gesto de amor, de presença, de quem se despede junto, mesmo quando não se vai. Por trás daquela cena, a atmosfera estava carregada de um luto que eu não entendia completamente, mas que me atravessava mesmo assim.

Fui arrumado pela minha mãe. Não lembro de ver a Marcela, não lembro dos detalhes do transporte, mas me lembro de chegarmos à casa da minha bisavó. Lá encontramos minha avó Arlete, desolada. Ela parecia um reflexo do que meu pai sentia, como se a dor tivesse passado de uma geração para a outra. O ambiente, apesar de silencioso, gritava a presença da ausência. A “vovozinha” tinha partido.

Seguiu-se o velório. O culto fúnebre aconteceu na Assembleia de Deus em Gurigica, congregação do Ministério Alecrim. Era uma igreja pequena, mas naquele dia estava lotada. Lotada de crentes, de amigos, de familiares, e de uma atmosfera que misturava dor e consolo. A tampa do caixão estava colocada, se não me engano, do lado direito do templo. Fiquei ali, pequeno no meio daquela multidão, observando, tentando compreender o que significava perder alguém. Perder não era só ausência, era também um vazio que ecoava no coração.

O sepultamento aconteceu no Cemitério de Maruípe. Não me lembro do túmulo, mas lembro das pessoas. Muitas pessoas. Lembro do calor da tarde, do silêncio que se misturava ao som abafado dos passos e das vozes sussurradas. Minha bisavó foi honrada. A presença de tanta gente parecia dizer que sua vida havia deixado marcas em muitas outras.

Daqueles dias de infância, essa memória se tornou um marco. Foi a primeira vez que a morte chegou tão perto de mim. Antes, ela havia me visitado de longe, na figura do Renato, do Gilberto, do Seu Joel. Mas agora era a vovozinha. Alguém meu. Alguém que tinha um nome dito entre lágrimas. Foi também a primeira vez que vi meu pai chorar. Esse homem que parecia inabalável se desfez diante da despedida, e naquele dia entendi que até os mais fortes carregam lágrimas escondidas.

A vida nos ensina a lidar com despedidas, mas naquele momento eu apenas sentia. Sentia a perda, sentia o amor que a memória deixava, e sentia o consolo silencioso que a fé oferecia. Foi um dia de luto, mas também um dia de honra. Minha bisavó se foi, mas deixou a marca de uma vida vivida. E ali, no choro do meu pai e no abraço de minha mãe, vi o amor atravessar a dor e construir um espaço para a lembrança. Uma lembrança que, até hoje, permanece viva em mim.

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